Após a fantástica visita a Mumbai, seguiu-se
o último destino da nossa viagem: Goa. A saída da cidade foi tudo menos
pacífica. Mais uma vez tivemos problemas com o comboio. Mesmo apesar de termos
feito as reservas com um mês de antecedência, a três horas da partida ainda
tínhamos cerca de 300 pessoas à nossa frente. E, ao contrário do que aconteceu em Delhi, não conseguimos
resolver o problema. Fazer a viagem de avião estava totalmente fora de questão
por causa do preço. Por isso, não nos restou outra solução que não viajar num
autocarro de terceira classe. A viagem durou cerca de dezassete horas. Pneus furados, “estações
de serviço” nojentas, com casas de banho “do além”, aconteceu-nos de tudo.
Dormir foi uma missão completamente impossível, já que passaram, em loop, filmes de Bollywood aos altos berros. Espetacular. Quando
estava pronta a cortar a jugular do motorista, lá chegámos a Margão, completamente
amassados. Parecia que o próprio autocarro nos tinha atropelado. Felizmente, a
inigualável hospitalidade indiana fez-nos esquecer tudo. A N., a L, e a Mama E., foram as melhores pessoas do
mundo, e receberam-nos como ninguém [o Lobo está cheio de saudades].
Margão, a cidade das especiarias, é um local mágico. A presença
portuguesa está bem vincada. O nome dos estabelecimentos, a fisionomia das
pessoas, a gastronomia, a toponímia das ruas, são reveladores de quinhentos
anos de História, bem presentes na memória dos goeses. Uma vez que são maioritariamente
católicos, estão-se a marimbar para a história das vacas sagradas, pelo que
pude provar, pela primeira vez na vida, língua estufada. E adorei. O
restaurante, o Longuinhos , o mais
antigo da cidade, é simplesmente fantástico e os pratos resultam da junção
perfeita entre a nossa gastronomia e o exotismo do Oriente. Uma vez que não tínhamos
muito tempo, optámos pela visita a Old Goa, berço da presença portuguesa na região. Património Mundial da UNESCO,
foi a capital da India portuguesa até ao século XVIII, sendo composta por Igrejas,
a “Basílica do Bom Jesus” e a “Sé Catedral de Goa”. Confesso que ver um Cristo
coberto de sangue na Índia é absolutamente arrepiante, uma experiencia única,
que jamais esquecerei. Estava a pisar solo português e não tive dúvidas disso.
Pangim e North Goa fizeram,
igualmente, parte do nosso percurso. Como também somos filhos de Deus,
decidimos passar o fim-de-semana numa estância 4*, com tudo a que tínhamos direito:
festa na piscina, spa, praia. Foi literalmente tudo à grande. Uma vez que o Resort era de um amigo da N., fomos
tratados principescamente e não nos cobraram a estadia. Aliás, para pagar a
comida tivemos que insistir muito. A hospitalidade indiana é de facto um
fenómeno inexplicável. Ao fim de três semanas de privações, finalmente consegui
sentir-me gente. O melhor foi quando me disseram para me arranjar porque íamos a
um Night Club em Cape Town.
Espetacular. Na mala só haviam andrajos bons para esfregar escadas. As indianas
estavam vestidas como se fossem para a red
carpet de Hollywood, e o Lobo parecia que ia limpar o Colombo às quatro da
manhã. Maravilhoso. Lá tentei encenar uma maquilhagem decente e conjugar um
vestidinho, que estava escondido no fundo da mala, com umas sandálias manhosas
que tinha comprado em Deli [e que se iam desfazendo à medida que a noite
avançava]. Confesso que me diverti à grande. Bebemos [álcool,
finalmente, e do bom], dançamos, conhecemos um monte de gente que queria ensaiar o seu
“português” connosco. Enfim uma festa. Por pouco não tinha trazido dez
potenciais maridos na bagagem, já que o meu querido e amado irmão teve a triste
ideia de gritar, em altos berros, que andava à procura de noivo para mim. Os “candidatos”
não perceberam a piada e ficaram realmente interessados em arranjar uma esposa
portuguesa. Bom, não é?
A experiência em Goa foi fechar com chave de Ouro a mais terrível,
brutal e espetacular viagem de toda a minha vida. Aprendi a controlar o
sofrimento, a esconder a dor física, a ficar indiferente a feridos e mortos, a
esconder a dó e a compaixão pelos pobres entre os mais pobres, a enxotar
crianças pedintes. A ignorar as pequenas coisas que não aceitamos no dia-a-dia,
como um restaurante sujo, ou lençóis cheios de gafanhotos. Afinal, mesmo à
porta havia gente a morrer de fome, com uma folha de jornal para se tapar.
Aprendi que tudo é relativo, que somos seres privilegiados por que nos puseram
no sítio certo à hora certa. Temos conforto, cuidados de saúde, família,
trabalho, uma casa. Por aqui está tudo bem. Por lá nem por isso. A India
levou-me a fazer uma profunda introspeção sobre o caminho que tinha percorrido
até então, as opções que tinha tomado, a importância da família, do Caeser, e
dos amigos, e o valor relativo de quem só tinha feito de lastro na minha vida,
e puxado para o fundo. Deixei a energia negativa que carregava com a oferenda
que deixei a Lord Shiva, no Ganges,
e, quando o avião descolou, sussurrei um: “Até Já”.
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