quinta-feira, 26 de junho de 2014

Crónicas da India # 12 - O Lobo em Goa

Após a fantástica visita a Mumbai, seguiu-se o último destino da nossa viagem: Goa. A saída da cidade foi tudo menos pacífica. Mais uma vez tivemos problemas com o comboio. Mesmo apesar de termos feito as reservas com um mês de antecedência, a três horas da partida ainda tínhamos cerca de 300 pessoas à nossa frente. E, ao contrário do que aconteceu em Delhi, não conseguimos resolver o problema. Fazer a viagem de avião estava totalmente fora de questão por causa do preço. Por isso, não nos restou outra solução que não viajar num autocarro de terceira classe. A viagem durou cerca de dezassete horas. Pneus furados, “estações de serviço” nojentas, com casas de banho “do além”, aconteceu-nos de tudo. Dormir foi uma missão completamente impossível, já que passaram, em loop, filmes de Bollywood aos altos berros. Espetacular. Quando estava pronta a cortar a jugular do motorista, lá chegámos a Margão, completamente amassados. Parecia que o próprio autocarro nos tinha atropelado. Felizmente, a inigualável hospitalidade indiana fez-nos esquecer tudo. A N., a L, e a Mama E., foram as melhores pessoas do mundo, e receberam-nos como ninguém [o Lobo está cheio de saudades].

Margão, a cidade das especiarias, é um local mágico. A presença portuguesa está bem vincada. O nome dos estabelecimentos, a fisionomia das pessoas, a gastronomia, a toponímia das ruas, são reveladores de quinhentos anos de História, bem presentes na memória dos goeses. Uma vez que são maioritariamente católicos, estão-se a marimbar para a história das vacas sagradas, pelo que pude provar, pela primeira vez na vida, língua estufada. E adorei. O restaurante, o Longuinhos , o mais antigo da cidade, é simplesmente fantástico e os pratos resultam da junção perfeita entre a nossa gastronomia e o exotismo do Oriente. Uma vez que não tínhamos muito tempo, optámos pela visita a Old Goa, berço da presença portuguesa na região. Património Mundial da UNESCO, foi a capital da India portuguesa até ao século XVIII, sendo composta por Igrejas, a “Basílica do Bom Jesus” e a “Sé Catedral de Goa”. Confesso que ver um Cristo coberto de sangue na Índia é absolutamente arrepiante, uma experiencia única, que jamais esquecerei. Estava a pisar solo português e não tive dúvidas disso.

Pangim e North Goa  fizeram, igualmente, parte do nosso percurso. Como também somos filhos de Deus, decidimos passar o fim-de-semana numa estância 4*, com tudo a que tínhamos direito: festa na piscina, spa, praia. Foi literalmente tudo à grande. Uma vez que o Resort era de um amigo da N., fomos tratados principescamente e não nos cobraram a estadia. Aliás, para pagar a comida tivemos que insistir muito. A hospitalidade indiana é de facto um fenómeno inexplicável. Ao fim de três semanas de privações, finalmente consegui sentir-me gente. O melhor foi quando me disseram para me arranjar porque íamos a um Night Club em Cape Town. Espetacular. Na mala só haviam andrajos bons para esfregar escadas. As indianas estavam vestidas como se fossem para a red carpet de Hollywood, e o Lobo parecia que ia limpar o Colombo às quatro da manhã. Maravilhoso. Lá tentei encenar uma maquilhagem decente e conjugar um vestidinho, que estava escondido no fundo da mala, com umas sandálias manhosas que tinha comprado em Deli [e que se iam desfazendo à medida que a noite avançava]. Confesso que me diverti à grande. Bebemos [álcool, finalmente, e do bom], dançamos, conhecemos um monte de gente que queria ensaiar o seu “português” connosco. Enfim uma festa. Por pouco não tinha trazido dez potenciais maridos na bagagem, já que o meu querido e amado irmão teve a triste ideia de gritar, em altos berros, que andava à procura de noivo para mim. Os “candidatos” não perceberam a piada e ficaram realmente interessados em arranjar uma esposa portuguesa. Bom, não é?   

A experiência em Goa foi fechar com chave de Ouro a mais terrível, brutal e espetacular viagem de toda a minha vida. Aprendi a controlar o sofrimento, a esconder a dor física, a ficar indiferente a feridos e mortos, a esconder a dó e a compaixão pelos pobres entre os mais pobres, a enxotar crianças pedintes. A ignorar as pequenas coisas que não aceitamos no dia-a-dia, como um restaurante sujo, ou lençóis cheios de gafanhotos. Afinal, mesmo à porta havia gente a morrer de fome, com uma folha de jornal para se tapar. Aprendi que tudo é relativo, que somos seres privilegiados por que nos puseram no sítio certo à hora certa. Temos conforto, cuidados de saúde, família, trabalho, uma casa. Por aqui está tudo bem. Por lá nem por isso. A India levou-me a fazer uma profunda introspeção sobre o caminho que tinha percorrido até então, as opções que tinha tomado, a importância da família, do Caeser, e dos amigos, e o valor relativo de quem só tinha feito de lastro na minha vida, e puxado para o fundo. Deixei a energia negativa que carregava com a oferenda que deixei a Lord Shiva, no Ganges, e, quando o avião descolou, sussurrei um: “Até Já”.     

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