quarta-feira, 18 de março de 2015

Crónica do Tempo que Resta


O meu avô tem 93 anos e Alzheimer, em estado muito avançado. Estou certa de que não me reconhece há uns dois anos. Mais ou menos desde a altura em que a minha avó morreu. Curiosamente, reconhece sempre o meu irmão, que vem pouco a Portugal. Levanta os olhos azuis e sussurra: “Pedro”. Estranho. E eu que sempre achei que era a neta querida. [Just Kidding]. Por mais voltas que dê, não me consigo habituar a vê-lo assim. Um homem ativo, que trabalhou até aos 80 anos. Que geriu a vida e a família com punho de ferro. Dono de uma moral, de uma educação, e de uma correção inquestionáveis. Ainda me lembro dos dias em que me levava ao Porto de Abrigo e me ensinava o nome dos barcos. Parece que foi ontem. Não me consigo conformar. A doença fez com que o meu avô passasse a viver num tempo diferente do nosso. Numa dimensão em que as pessoas não vivem. Limitam-se a existir. Vou vê-lo, sempre que posso, na companhia da minha mãe. Falamos muito, mas não tenho a certeza se nos ouve. Está quase sempre “lá”, onde quer que “lá” fique. Custa-me vê-lo assim, mas sei que agora está melhor, com todos os cuidados de que necessita. Seja como for, um Lar da Terceira Idade não é um sítio fácil. Em última análise, acaba por ser, literalmente, o fim da linha. Aos poucos, vou conhecendo a história dos outros “utentes”. Uma senhora pergunta incessantemente a que horas “vamos apanhar o autocarro”, porque tem que ir fazer o jantar, já que “a família está à espera”. Foi enfermeira e espera, desesperadamente, por uma filha que nunca chega. “Está a trabalhar”, conforta-a a mina mãe. “Quando puder passa por cá”. Outra grita, sem parar: “anda cá”, enquanto me tenta agarrar a mão. Assumo que apenas queira algum calor humano. Foi abandonada pela família, que não a vai visitar há anos. Histórias já de si tristes, a que o Alzheimer fez questão de acrescentar um ponto negro. Sempre que lá vou, reflito na minha própria vida. Lembro-me da infância, dos momentos que passei com os meus avós. Do cheiro a bolo, dos linguados frescos para o almoço. Do cheiro das redes no armazém do barco. Em bom rigor, quando envelhecer não vou ter um descendente direto que cuide de mim. Não vou ter a sorte do meu avô e de outros velhotes que lá estão, que são amados pelas famílias. Se calhar, devia repensar “o tempo que resta”, mas, lamentavelmente, não consigo. É pena. 

1 comentário :

  1. Um descendente direto nem sempre nos garante o cuidado em fim de linha, como referes. Mas o amor partilhado, sim, nesse eu continuo a ac reditar que quanto mais damos, mais iremos receber.
    Beijinhos e ás vezes repensar é urgente:)

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